segunda-feira, 11 de julho de 2011

Arte sem Fronteiras

Resenha da coletânea “Psiquiatria, Loucura e Arte: fragmentos da história brasileira” organizada por Elionora Haddad Antunes, Lúcia Helena Siqueira Barbosa e Lygia Maria de França Pereira. São Paulo: EdUSP , 2002. Originalmente publicada em Veredas, Revista do Centro Cultural do Banco do Brasil.

Em 1978, um incêndio destruiu a maior parte do acervo do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Diversas foram as propostas para a sua reestruturação. Uma delas foi feita por Mário Pedrosa, a partir da idéia do Museu das Origens, o qual se estruturaria como cinco museus independentes, mas interligados de maneira orgânica: do índio, de arte virgem, de arte moderna, do negro e de artes populares. Se esta proposta não foi levada adiante na reestruturação do MAM, nem por isso foi descartada por completo, pois serviu de base para se conceber a exposição Brasil + 500. Nessa exposição fica clara a conexão feita por Pedrosa entre, por exemplo, Anita Malfatti e Fernando Diniz, e que se baseia no fato de que a arte moderna inspirou-se na arte daqueles que denominou de “povos periféricos”. Portanto, ao se valorizar o fato de Picasso ter sofrido influência dos povos africanos e de Klee se inspirar na pintura das crianças, nada mais justo do que colocar essas “origens” lado a lado com as pinturas modernas.
Outro ponto a ser destacado, e que muito pode nos ajudar na leitura do belo livro Psiquiatria, loucura e arte, é que essa valorização das origens coloca-se em posição oposta aos argumentos apresentados durante a exposição de “arte degenerada” organizada pelo regime nazista em 1937, numa clara tentativa de estigmatizar toda a arte moderna como fruto da insanidade pelo fato de ela se apropriar da linguagem dos indígenas, dos negros, dos loucos e das crianças como modelo artístico. O povo ariano não podia admitir que os artistas modernos degenerassem a cultura com rabiscos. Opiniões como a dos nazistas, de que se deveria banir da face da Terra idéias e pessoas que consideravam inferiores, influenciaram de maneira marcante diversos campos do conhecimento, notadamente a psiquiatria.
A psiquiatria vem, ao longo dos anos, se apoderando de qualquer produção de pessoas com transtornos mentais como índice de que o seu papel é o de isolar em asilos, de buscar as bases anatômicas das doenças mentais e de contê-las com terapêuticas como o eletrochoque e a lobotomia; ou o de lançar ideais racistas no contexto do movimento de higiene mental que demonstra o predomínio das idéias eugênicas e sua relação com a entrada de estrangeiros no país durante o governo Vargas; ou, ainda, o de se apropriar da infância por meio do discurso psiquiátrico que criou tribunais e escolas correcionais nas quais as crianças brincam no recreio num pátio cercado por arame farpado. Reformulações, no entanto, vêm ocorrendo, como, por exemplo, o deslocamento no método de usar a arte no tratamento psiquiátrico, que passa a ser visto como “ampliação cultural”, e não mais como meio de se trazer à tona conteúdos internos.
Diversos atores sociais estão presentes nessa interação entre psiquiatria, loucura e arte, caracterizando este assunto pela pluralidade discursiva e não como de exclusividade dos trabalhadores de saúde mental. A literatura, por exemplo, é um rico manancial de visões sobre o psiquiatra e o louco, e muito contribui com a história, pois, se dessa forma não fosse, Franco Basaglia não teria afirmado que a narrativa sobre Simão Bacamarte torna clara, antes mesmo das críticas e reformulações efetuadas pela psiquiatria a partir dos anos 60, a relação de dominação do médico sobre o doente baseado em seu poder constituído no saber classificativo. As classificações psiquiátricas, no entanto, não são problemáticas apenas para o alienista machadiano, mas também na relação entre médico e arquiteto no momento inaugural da psiquiatria no Brasil. A construção dos grandes asilos, no Brasil, seguiu o modelo teórico implantado por Esquirol, porém a organização do espaço se mostra inadequada pelo fato de a racionalidade classificativa empregada pela psiquiatria exigir cada vez mais espaços separados, distanciando o psiquiatra de seu ideal arquitetônico. O resgate destas concepções, que são amplamente discutidas e analisadas nos artigos desta importante coletânea, seja em relação à arquitetura, aos tratamentos preconizados, à literatura etc., constitui-se, como é afirmado no subtítulo, não como assunto de interesse de poucos, mas como “fragmentos da história brasileira”.
Por Walter Melo


Postado em 17/04/2011.

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