segunda-feira, 11 de julho de 2011

Casa das Palmeiras, casa dos afetos

O texto que segue abaixo foi feito a pedido da jornalista Alice Melo da Revista de História da Biblioteca Nacional e foi publicado em parte na reportagem "Cabeça erguida e bolso vazio" do dia 30/12/2010.

Qual a importância histórica da Casa das Palmeiras? Não podemos nos esquecer que a pergunta é feita no presente. Dessa forma, não podemos falar de uma Casa das Palmeiras que se encontra somente no passado, que morre para entrar para a história... Temos que falar de uma Casa das Palmeiras que inovou no tratamento no campo da saúde mental, que tratou e reabilitou tantas pessoas, que formou muita gente (eu mesmo posso afirmar, com todas as letras, que devo grande parte de minha formação de psicólogo a Casa das Palmeiras) e que, portanto, possui importância pelo seu passado. Temos que falar, também, de uma Casa das Palmeiras que se mantém em funcionamento desde o dia 23 de dezembro de 1956 até os dias de hoje (escrevo justamente no dia em a Casa das Palmeiras completa 54 anos). Temos que falar, ainda, da Casa das Palmeiras do futuro, pois precisamos dela com as portas abertas, possibilitando que novos sonhos se tornem realidade.

Após ser presa e afastada do serviço público durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, em 1944, Nise da Silveira voltou a trabalhar no hospital psiquiátrico, local caracterizado por ser um espaço de exclusão. As pessoas que lá entravam, não retornavam ao convívio com a sociedade. As portas estavam fechadas.

Nessa época, Nise da Silveira foi trabalhar na enfermaria dirigida pelo Dr. Fábio Sodré, que tentava implementar algumas mudanças. Por exemplo, as pessoas que apresentavam melhoras, recebiam alta. No entanto, Nise da Silveira observou que, de 25 pessoas que recebiam alta, 17 retornavam às enfermarias. As portas passaram a ser giratórias.

Nise da Silveira constatou que havia algum erro no método empregado. As portas fechadas estavam, para ela, fora de cogitação. Mas, as portas giratórias não solucionavam o problema. Pensou, então, em criar um setor intermediário, um local que funcionasse como uma espécie de ponte entre a rotina hospitalar e o convívio com a sociedade. Essa verdadeira câmara de descompressão ajudaria às pessoas que sofreram intensos abalos psíquicos a retomarem o contato com a sociedade, contato permeado pelo preconceito em relação ao chamado doente mental. Nise da Silveira queria as portas abertas.

Como não conseguiu apoio da direção do hospital para criar tal setor no serviço público, Nise da Silveira fundou, em 1956, com a ajuda de amigos, a Casa das Palmeiras, com o objetivo de evitar as internações psiquiátricas. A Casa das Palmeiras funciona a exatos 54 anos com as portas invariavelmente abertas.

Duas observações devem feitas: 1) A Casa das Palmeiras não se caracteriza, de forma alguma, como um hospital-dia, como tinha sido tentado, por exemplo, pelo grande Ulysses Pernambucano na década de 1920. Trata-se, antes, de uma ruptura radical em relação ao modelo centrado no hospital, ou seja, a Casa das Palmeiras surgiu como o primeiro serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico; 2) Apesar de a Casa das Palmeiras não estar inserida no serviço público, ela serve como um projeto piloto. Portanto, devemos analisar a importância da Casa das Palmeiras a partir dos efeitos provocados nas políticas públicas no âmbito da saúde mental.

Podemos pensar esses efeitos em duas etapas: ter demonstrado que era possível combinar tratamento com liberdade, ou melhor, que somente era possível combinar tratamento com liberdade; e provocar mudanças culturais, que transformassem, gradativamente, as concepções acerca do chamado doente mental.

A primeira etapa se caracteriza pela luta contra o manicômio de muros, cercas, vigilância constante, espaço e tempo minuciosamente administrados. Essa etapa já se encontra em andamento: em 1989, o deputado federal Paulo Delgado propôs o projeto de lei, aprovado em 2001, que dispõe sobre a substituição gradual de leitos asilares por serviços com as portas abertas; em 1987, foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que, em 2003, foi transformado em política pública através de portaria ministerial.

A segunda etapa é ainda mais difícil que a primeira. Trata-se da luta contra o manicômio mental. Para provocar uma verdadeira transformação cultural, Nise da Silveira empreendeu diversas ações em direção à cidade: foram feitas centenas de exposições artístico-científicas com a produção dos ateliês do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras; Leon Hirszman dirigiu a trilogia cinematográfica Imagens do Inconsciente; Rubens Correa encenou, a pedido de Nise da Silveira, a peça Artaud!; diversos terapeutas sofreram influência direta ou indireta das concepções de Nise da Silveira.

No entanto, a racionalidade que exclui, estigmatiza e abandona, pode estar presente em cada um de nós, em cada serviço substitutivo. Assim, em nossos serviços de portas abertas, são reproduzidas as práticas asilares de maneira cotidiana.

Como podemos observar, a Casa das Palmeiras possui importância não apenas como um marco histórico, mas a ênfase inovadora que imprimiu, ao fazer confluir liberdade, atividade e afetividade, é de suma importância para transformações futuras no campo da saúde mental. Para tanto, a Casa das Palmeiras deve se manter com as portas e as cabeças abertas.

Por Walter Melo


Postado em 28/01/2011.

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