segunda-feira, 11 de julho de 2011

Jung e a Imagem de Deus

Ao estudar a representação psicológica da energia psíquica através das imagens, Jung afirma que, “sob o ponto de vista psicológico, a figura de Deus é um complexo de idéias de natureza arquetípica” (Jung, 1989 [1911], p. 48). Ao enunciar a imagem arquetípica de Deus, Jung “nem estabelece nem nega Deus” (idem, p. 49). A afirmação de Jung, no entanto, causou grande polêmica, pois os críticos confundiram psicologia empírica com as concepções metafísicas da teologia.

Alguns autores passaram a se referir a Jung como um religioso que afirmara a existência de Deus; outros como um gnóstico que provara conhecer Deus; e outros, ainda, que Jung era ateu, pois substituíra Deus por uma simples imagem.

Podemos acompanhar através das cartas de Jung a insistente preocupação em se manter nos limites da psicologia, não demonstrando nenhuma preocupação metafísica. Por exemplo, em 1º e em 12 de junho de 1933, Jung respondeu ao Dr. Paul Maag - que o considerava um ateu - da seguinte maneira:

“O senhor certamente já percebeu que eu trato apenas de psicologia e não de teologia. Quando abordo, portanto, o conceito de Deus, eu o faço apenas do ponto de vista da psicologia, e não de sua hipóstase. Deixei bem claro em meus escritos esta limitação epistemológica, cientificamente necessária” (Jung, 2001 [1933], p. 138).

Enquanto Jung respondia ao médico que a partir dos estudos que empreendeu não era possível afirmar que não acreditava na existência de Deus, traçando “uma rigorosa linha divisória entre o conteúdo da fé e as exigências da ciência” (idem, p. 140), era forçado a responder ao pastor Ernst Janh, em 7 de setembro de 1935, que também não afirmava a existência de Deus:

“Quando falo de Deus, faço-o sempre como psicólogo, e enfatizo isto expressamente em muitas passagens de meus livros. Para o psicólogo, a imagem de Deus é um fato psicológico. Sobre a realidade metafísica de Deus ele nada sabe dizer, pois isto ultrapassaria de longe os limites epistemológicos” (Jung, 2001 [1935], pp. 208-9).

Em carta de 8 de fevereiro de 1941 dirigida ao pastor Josef Goldbrunner, Jung voltou a afirmar que, ao estudar a imagem de Deus, não está ultrapassando os limites científicos e afirmando a existência de Deus: “O senhor certamente não sabia que epistemologicamente me baseio em Kant, o que significa que uma afirmação não postula o seu objeto” (Jung, 2001 [1941], p. 303). A resposta se repete ao pastor Max Frischknecht, em 17 de julho de 1945: “Só posso repetir: não sou um teólogo que prega determinado Deus, mas um empírico que só pode constatar a existência de uma possibilidade arquetípica de idéias sobre Deus, quaisquer que elas sejam” (Jung, 2001 [1945], p. 377).

Entretanto, não devemos pensar que todos os religiosos encaravam as teorias de Jung como tentativas de provar a existência de Deus. Alguns o acusavam de psicologismo e/ou de ateísmo. Em carta ao padre Victor White, de 5 de outubro de 1945, Jung explica a afirmação que fez em 1911: “quando disse que Deus é um complexo, eu pensei o seguinte: o que quer que seja, ele é no mínimo um complexo bem real. Pode-se dizer que ele é uma ilusão, mas é ao menos um fato psíquico. Nunca esteve em minha intenção dizer: ele nada mais é do que um complexo” (Jung, 2001 [1945], p. 388).

Em carta de 22 de fevereiro de 1952 dirigida ao editor da revista Merkur, de Stuttgart, Jung refere-se a dois trabalhos: um do filósofo Hermann Keyserling, publicado em novembro de 1950; e outro de Martin Buber, publicado em fevereiro de 1952. Enquanto Keyserling classifica Jung como um negador do espírito, ou seja, como um ateu, Buber classifica-o como um gnóstico. Os dois teóricos abordam as concepções da psicologia analítica a partir de pressupostos teológicos. Jung diz sentir-se no dever de agradecer a Buber, pois lhe dava a oportunidade de explicar publicamente as suas concepções. Como Jung poderia ser ao mesmo tempo agnóstico e gnóstico? Por que insistir em estender para o campo da metafísica estudos psicológicos? Jung parece se sentir bastante à vontade com a situação: “Ora, se opiniões divergem tanto umas das outras sobre uma determinada questão, é porque, segundo me parece, existe a suposição bem fundada de que nenhuma delas é verdadeira, isto é, há um mal-entendido” (Jung, 1998 [1952], p. 241). As idéias lançadas por Buber rapidamente foram difundidas, tendo Jung que responder ao pastor Fritz Buri em carta de 5 de maio de 1952:

“Eu não pretendo conhecer algo representativo ou comparável de um Deus metafísico. Por isso não entendi muito bem como pode o senhor pressentir (...) uma presunção ‘gnóstica’. Na mais estrita contraposição ao gnosticismo e à teologia, limito-me à psicologia (...) e nunca afirmei possuir um vestígio sequer de conhecimento metafísico” (Jung, 2002 [1952], p. 239).

Devemos, portanto, deixar de lado a preocupação quanto ao fato de Jung ser um materialista ou um místico. Jung nunca afirmou em seus textos psicológicos a existência de Deus, nem mesmo chegou a declarar suas convicções pessoais. Jung não pretendia criar qualquer espécie de culto. Também nunca afirmou a inexistência de Deus, substituindo o Deus metafísico por uma simples imagem: “Como poderia alguém substituir Deus? Não posso nem mesmo substituir pela fantasia um simples botão, mas preciso comprar um novo!” (Jung, 2002 [1948], p. 93).

A psicologia analítica deve ser estudada sem preconceitos, pois no campo do saber o debate aberto de idéias deve ser priorizado. As concepções psicológicas e de qualquer outra ciência não podem ser rechaçadas por atitudes dogmáticas, seja do campo religioso seja nos círculos acadêmicos.
Por Walter Melo
Bibliografia:
JUNG, C.G. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1989 [1911].
__________. “Religião e Psicologia”: uma resposta a Martin Buber. in.: A Vida Simbólica. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1998 [1952].
__________. Cartas (1906-1945). Volume I. Petrópolis: Vozes, 2001.
__________. Cartas (1946-1955). Volume II. Petrópolis: Vozes, 2002.


Postado em 02/02/2011.

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