Teatro para Augusto Boal é luta. Podemos verificar essa afirmação ao longo de sua obra. Trata-se de uma luta para interferir na realidade, principalmente em países como o Brasil, com imensas desigualdades sócio-econômicas. Pautado no materialismo histórico, Boal afirma que “a ação dramática deve mostrar-se (...) como uma ‘contradição de necessidades sociais’” (1977, p. 20).
O teatro proposto por Boal se contrapõe, então, à expressão de estados da alma. Os conflitos lhe interessam acima de tudo e, mais ainda, os conflitos sociais que ocorrem no cotidiano da vida das pessoas. O caráter inter-relacional da arte se sobrepõe à exibição das emoções, pois pretende criar empatia entre o personagem e a platéia; e, mais que isso, pretende um teatro dinâmico, com uma ligação emocional dinâmica; e, mais que isso, pretende um teatro da ação transformadora através da “emoção dialética” (Boal, 1977, p. 48).
A emoção encontra-se no cerne da ação dramática e em seu potencial de transformação do mundo. Não se trata, porém, de criar personagens como se fossem “lagoas de emoção” (Boal, 1977, p. 49). As emoções devem estar inextricavelmente ligadas às vontades, ou seja, às concretizações de idéias. As emoções abstratas somente interessam a Boal como ponto de partida para a construção de algo que seja efetivamente teatral. Para se realizar teatro, os personagens devem desejar no plano concreto, em situações bem determinadas: “a idéia abstrata, transformada em vontade concreta em determinada circunstância, provocará no ator a emoção que por si própria irá descobrir a forma teatral adequada, válida e eficaz para o espectador” (p. 51).
Como, em situações concretas, cada um deseja algo diverso, o conflito constitui-se como marca essencial da teatralidade, caracterizando a interpretação como uma estrutura dialética. A esse teatro, definido pelo conflito, pela luta, vão se juntar as noções de que todos os seres humanos são atores (inclusive os profissionais) e de que não devemos buscar a arte pela arte.
A premissa de que todo ser humano pode representar está diretamente relacionada com o caráter de não autonomia da arte. Partindo do princípio de que a arte dita desinteressada serve a interesses opressores, Boal assume o caráter de transformação social da arte, que “deve responder a desafios da realidade” (1977, p. 18). Os artistas devem, então, se dirigir às pessoas que mais enfrentam desafios na vida. Quais são essas pessoas? Quem compõe o público de Augusto Boal? A resposta: os oprimidos.
Podemos observar que, para Boal, não há como desvincular teatro e política. Sendo clara a sua opção pela política de esquerda. Sendo assim, desde o início da carreira, no Teatro de Arena, procurou estabelecer diálogo com os oprimidos, pretendendo a transformação da sociedade: “o primeiro dever da esquerda é o de incluir o povo como interlocutor do diálogo teatral” (1970, p. 47). Se o interlocutor privilegiado é o povo, o local propício é a praça.
Os modos de Augusto Boal fazer teatro variam, porém a coerência de fazer teatro para o povo se mantém. Melhor dizendo, não se trata de fazer teatro para o povo, mas sim de fazer teatro com o povo. Daí, não só atores e não-atores poderem fazer teatro, mas é necessário compreender que todo ser humano é teatro (Boal, 1996). Para Boal, o ser humano se caracteriza pela capacidade de observar as próprias ações, ou seja, pela capacidade de ser teatro. Nesse caso, a dicotomia entre ator e espectador existe somente como maneira de os seres humanos especializarem os seus fazeres sociais, quando alguns atuam e outros assistem. Já no Teatro do Oprimido somos todos Spec-Atores.
O Teatro do Oprimido se constitui, então, através de um longo percurso e de criação de diferentes formas de se fazer teatro, que passa pela direção artística do Teatro de Arena (1956-1971), pelo Agit-Prop (agitação e propaganda), pela Dramaturgia Simultânea, pelo Teatro do Invisível, pelo Teatro Fórum e pelo Arco-Íris do Desejo. Esse último é definido como método Boal de teatro e terapia.
Sempre me interessei pela interface entre o campo da saúde, mais especificamente da saúde mental, com as artes. Desde os tempos em que trabalhei na Casa das Palmeiras até os dias de hoje, no Espaço Artaud (que se coloca numa região de fronteiras entre a terapia, a reabilitação psicossocial e a arte) e no Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS), da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).
Essa “superposição de terrenos” (Boal, 1996, p. 24) supõe que estejamos abertos a parcerias. Sendo a construção de parcerias uma das marcas registradas do trabalho desenvolvido por Nise da Silveira a frente do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras, e que levei adiante na construção do Espaço Artaud. Afinal, ninguém vai sozinho ao paraíso (Melo, 2005).
Em 1993, durante uma reunião de equipe da Casa das Palmeiras, sugeri que entrássemos em contato com Augusto Boal para reorganizarmos a atividade de teatro (Melo, 2001; 2009). A psicóloga Cristina Frederico fez contato com Geo Britto, curinga do Centro de Teatro do Oprimido (CTO). Dessa forma, Geo Britto estabeleceu uma importante parceria entre o CTO e a Casa das Palmeiras, onde passou a fazer parte da equipe e a desenvolver técnicas de Teatro do Oprimido durante quatro anos (Britto, 2001).
Por Walter Melo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOAL, A. (1970). Que Pensa Você da Arte de Esquerda? Latin American Theatre Review, vol. 3, n. 2, p. 45-53.
__________. (1977). 200 Exercícios e Jogos para o Ator e o Não-Ator com Vontade de Dizer Algo através do Teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
__________. (1996). O Arco-Íris do Desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
BRITTO, G. (2001). Carta de um Discípulo à sua Mestra. Metaxis, ano I, n. 1, p. 16-17.
MELO, W. (2001). Nise da Silveira. Rio de Janeiro/Brasília: Imago/CFP.
__________. (2005). Ninguém Vai Sozinho ao Paraíso: o percurso de Nise da Silveira na psiquiatria do Brasil. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UERJ.
__________. (2009). O Terapeuta como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica. Rio de Janeiro: Espaço Artaud.
O teatro proposto por Boal se contrapõe, então, à expressão de estados da alma. Os conflitos lhe interessam acima de tudo e, mais ainda, os conflitos sociais que ocorrem no cotidiano da vida das pessoas. O caráter inter-relacional da arte se sobrepõe à exibição das emoções, pois pretende criar empatia entre o personagem e a platéia; e, mais que isso, pretende um teatro dinâmico, com uma ligação emocional dinâmica; e, mais que isso, pretende um teatro da ação transformadora através da “emoção dialética” (Boal, 1977, p. 48).
A emoção encontra-se no cerne da ação dramática e em seu potencial de transformação do mundo. Não se trata, porém, de criar personagens como se fossem “lagoas de emoção” (Boal, 1977, p. 49). As emoções devem estar inextricavelmente ligadas às vontades, ou seja, às concretizações de idéias. As emoções abstratas somente interessam a Boal como ponto de partida para a construção de algo que seja efetivamente teatral. Para se realizar teatro, os personagens devem desejar no plano concreto, em situações bem determinadas: “a idéia abstrata, transformada em vontade concreta em determinada circunstância, provocará no ator a emoção que por si própria irá descobrir a forma teatral adequada, válida e eficaz para o espectador” (p. 51).
Como, em situações concretas, cada um deseja algo diverso, o conflito constitui-se como marca essencial da teatralidade, caracterizando a interpretação como uma estrutura dialética. A esse teatro, definido pelo conflito, pela luta, vão se juntar as noções de que todos os seres humanos são atores (inclusive os profissionais) e de que não devemos buscar a arte pela arte.
A premissa de que todo ser humano pode representar está diretamente relacionada com o caráter de não autonomia da arte. Partindo do princípio de que a arte dita desinteressada serve a interesses opressores, Boal assume o caráter de transformação social da arte, que “deve responder a desafios da realidade” (1977, p. 18). Os artistas devem, então, se dirigir às pessoas que mais enfrentam desafios na vida. Quais são essas pessoas? Quem compõe o público de Augusto Boal? A resposta: os oprimidos.
Podemos observar que, para Boal, não há como desvincular teatro e política. Sendo clara a sua opção pela política de esquerda. Sendo assim, desde o início da carreira, no Teatro de Arena, procurou estabelecer diálogo com os oprimidos, pretendendo a transformação da sociedade: “o primeiro dever da esquerda é o de incluir o povo como interlocutor do diálogo teatral” (1970, p. 47). Se o interlocutor privilegiado é o povo, o local propício é a praça.
Os modos de Augusto Boal fazer teatro variam, porém a coerência de fazer teatro para o povo se mantém. Melhor dizendo, não se trata de fazer teatro para o povo, mas sim de fazer teatro com o povo. Daí, não só atores e não-atores poderem fazer teatro, mas é necessário compreender que todo ser humano é teatro (Boal, 1996). Para Boal, o ser humano se caracteriza pela capacidade de observar as próprias ações, ou seja, pela capacidade de ser teatro. Nesse caso, a dicotomia entre ator e espectador existe somente como maneira de os seres humanos especializarem os seus fazeres sociais, quando alguns atuam e outros assistem. Já no Teatro do Oprimido somos todos Spec-Atores.
O Teatro do Oprimido se constitui, então, através de um longo percurso e de criação de diferentes formas de se fazer teatro, que passa pela direção artística do Teatro de Arena (1956-1971), pelo Agit-Prop (agitação e propaganda), pela Dramaturgia Simultânea, pelo Teatro do Invisível, pelo Teatro Fórum e pelo Arco-Íris do Desejo. Esse último é definido como método Boal de teatro e terapia.
Sempre me interessei pela interface entre o campo da saúde, mais especificamente da saúde mental, com as artes. Desde os tempos em que trabalhei na Casa das Palmeiras até os dias de hoje, no Espaço Artaud (que se coloca numa região de fronteiras entre a terapia, a reabilitação psicossocial e a arte) e no Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS), da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).
Essa “superposição de terrenos” (Boal, 1996, p. 24) supõe que estejamos abertos a parcerias. Sendo a construção de parcerias uma das marcas registradas do trabalho desenvolvido por Nise da Silveira a frente do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras, e que levei adiante na construção do Espaço Artaud. Afinal, ninguém vai sozinho ao paraíso (Melo, 2005).
Em 1993, durante uma reunião de equipe da Casa das Palmeiras, sugeri que entrássemos em contato com Augusto Boal para reorganizarmos a atividade de teatro (Melo, 2001; 2009). A psicóloga Cristina Frederico fez contato com Geo Britto, curinga do Centro de Teatro do Oprimido (CTO). Dessa forma, Geo Britto estabeleceu uma importante parceria entre o CTO e a Casa das Palmeiras, onde passou a fazer parte da equipe e a desenvolver técnicas de Teatro do Oprimido durante quatro anos (Britto, 2001).
Por Walter Melo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOAL, A. (1970). Que Pensa Você da Arte de Esquerda? Latin American Theatre Review, vol. 3, n. 2, p. 45-53.
__________. (1977). 200 Exercícios e Jogos para o Ator e o Não-Ator com Vontade de Dizer Algo através do Teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
__________. (1996). O Arco-Íris do Desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
BRITTO, G. (2001). Carta de um Discípulo à sua Mestra. Metaxis, ano I, n. 1, p. 16-17.
MELO, W. (2001). Nise da Silveira. Rio de Janeiro/Brasília: Imago/CFP.
__________. (2005). Ninguém Vai Sozinho ao Paraíso: o percurso de Nise da Silveira na psiquiatria do Brasil. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UERJ.
__________. (2009). O Terapeuta como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica. Rio de Janeiro: Espaço Artaud.
Postado em 16/02/2011.
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