Resenha da coletânea “Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios” organizada por Helion Povoa Neto e Ademir Pacelli Ferreira. Rio de Janeiro: Revan, 2005. Originalmente publicada em Latin Americam Journal of Fundamental Psycopathology.
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: ‘Evitai ouvir esse impostor. Estamos perdidos e esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!’”.Jean-Jacques Rousseau
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: ‘Evitai ouvir esse impostor. Estamos perdidos e esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!’”.Jean-Jacques Rousseau
Estamos vivendo um processo de globalização, com vários países tendo a economia unificada e com a informação circulando de maneira instantânea através da televisão e da internet. Dessa forma, as fronteiras parecem se dissipar. Por outro lado, os exemplos de defesa exacerbada dos territórios nacionais estão cada vez mais freqüentes.
As justificativas para isso giram em torno de aspectos religiosos, econômicos ou de proteção contra possíveis ataques terroristas. Para garantir as fronteiras faz-se necessário criar grupos de inimigos potenciais, baseados em preconceitos e estereótipos. A criminalização dos migrantes – intensificada após o dia 11 de setembro de 2001 – é um dos temas abordados na coletânea “Cruzando Fronteiras Disciplinares: um panorama dos estudos migratórios”, organizada por Helion Póvoa Neto e Ademir Pacelli Ferreira.
Ninguém pode se atrever a ler essa coletânea tentando fixar idéias, estabelecer estreitos limites às concepções que se desdobram e sempre se encaminham para outro lugar ao longo da leitura. Ora estamos entre “italianos” em Caxias do Sul, ora entre “alemães” no Rio de Janeiro ou em Blumenau. Podemos, também, acompanhar casamentos entre brasileiros e anglo-americanos nos Estados Unidos ou transladar ao outro lado do mundo junto com japonesas e nipo-brasileiras.
Existe, ainda, algo mais importante: não podemos nem mesmo definir as fronteiras que são ultrapassadas a partir dos tradicionais acidentes geográficos que separam cidades, Estados, países e continentes. Na coletânea, as fronteiras disciplinares também são cruzadas, ocorrendo uma incessante interpenetração de saberes. Trata-se de uma obra com a participação de profissionais de diversas áreas do conhecimento, colocando-nos em contato com o objeto de estudo: o migrante. Os trabalhos apresentados, no entanto, não buscam um objeto transcendente. Essa não poderia ser a intenção, pois na tentativa de aproximação do pesquisador em relação ao tema o próprio pesquisador acaba migrando.
De acordo com os autores, os estudos acerca do migrante se caracterizam por serem migratórios, em relação aos métodos empregados, às hipóteses levantadas, às análises apresentadas e aos conceitos utilizados. Os movimentos espaciais da população, no passado e nos dias atuais, vão estar intimamente relacionados aos aspectos subjetivos e de formação da identidade. O processo migratório apresenta-se como um dos fundamentos de transformação da sociedade, não sendo concebido como um mero reflexo das dinâmicas sociais.
Os deslocamentos citadinos ou campesinos possibilitam aos migrantes uma aventura no campo do outro. E quem é que se desloca? São pessoas isoladas ou populações inteiras em busca da resolução de problemas. Mas nessa busca pela solução dos problemas, surgem, muitas vezes, o medo e a preocupação, pois se abandona uma situação anteriormente conhecida para se viver a novidade de se estar numa cultura completamente diversa.
Os autores, no entanto, não apresentam medo do migrante e nem da conseqüente transformação daí surgida. Estão abertos às mudanças e podemos dizer que a mudança se constitui em método. A atenção que os pesquisadores dedicam ao migrante vai além da mera curiosidade intelectual. Trata-se, antes, de um engajamento junto aos sujeitos enfocados. E nesse processo de mútua migração, nessa aventura empática, o migrante surge como uma alteridade radical, como um companheiro mítico.
No Brasil, os que vieram de outras pátrias já foram desejados ou odiados. Os mais variados motivos fazem com que estrangeiros venham viver no Brasil. Essas pessoas sofrem um intenso processo de desterritorialização física, econômica, política e cultural, tendendo a criar espaços característicos onde podem cantar suas músicas, comer comidas típicas e falar a língua natal. Essas formas fundamentais de reterritorialização dos migrantes, seja em determinadas regiões, seja na diáspora, são, muitas vezes, consideradas enquistamento étnico. A tentativa de ancoragem cultural do migrante passa, então, a ser vista como um corpo estranho no organismo social, justificando tentativas de assimilação.
No entanto, não existem nem quistos étnicos nem assimilação total de uma cultura pela outra, mas intensas trocas entre territórios-rede, pois se o movimento migratório retira o sujeito de um determinado espaço, não o desterritorializa por completo: sempre permanecem geografias imaginárias que trazem memórias e emoções de países e cidades invisíveis. Nesse contexto, a psicanálise dará uma contribuição fundamental: o conceito de inconsciente permite-nos pensar num sujeito que transita, sem fronteiras, no país do Outro, independente de qualquer demarcação identitária. A vida em sociedade, no entanto, nos traz constantemente o limite de alfândegas, de portas, de grades, de cercas, de arames farpados, de muros altos: a fronteira é uma invenção do homem.
Atualmente vivemos num mundo globalizado, de livre circulação de dinheiro para quem o tem e que se mostra virulentamente odioso em relação à diversidade cultural. Mas como tudo o que é historicamente construído pode, um dia, deixar de ser como é, podemos sonhar com um mundo de maior troca afetiva e convivência entre as pessoas.
Os estudos apresentados, frutos do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM-RJ), configuram diferenciadas metodologias e são efetuados por profissionais de diversas áreas. Nesse sentido, os migrantes estudados ao longo da coletânea servem de modelo para que as hipóteses também migrem e as fronteiras que separam o conhecimento sejam ultrapassadas.
Por Walter Melo
Postado em 21/02/2011.
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